Esta crônica utiliza os personagens do meu livro “A Revolução dos Nichos”, transportados para um futuro, talvez não muito distante…
Adão abriu lentamente os olhos, não se dando conta de onde estava exatamente. Afinal, este simples gesto já fora repetido em tantos lugares diferentes, tantas vezes, que ele não seria capaz de calcular. Ele, o homem que há mais tempo estava neste mundo, sentia-se cansado.
Mas, ao olhar para o lado, viu que não estava sozinho. Eva ainda dormia, com a boca entreaberta, emitindo um suave ronco. Sua inseparável companheira (não tão inseparável assim, visto que por alguns momentos na história eles estiveram afastados) também demonstrava sinais de cansaço.
Embora já houvessem passado maus bocados nesta vida, o casal primordial, estava percebendo um novo tipo de dificuldades nestes novos tempos. Desde a última virada de século, o mundo havia sofrido profundas modificações. Se de um lado a tecnologia havia proporcionado avanços outrora inimagináveis, trazendo mais conforto à vida terrena, a sociedade como um todo havia se modificado, criando novos padrões de comportamento que faziam com que os “mais antigos”, como eles, se sentissem excluídos, ou como se dizia antigamente, como “peixes fora da água”. Aliás, expressão esta em desuso, já que cada vez é mais difícil encontrar um lugar neste planeta que não esteja coberto de água salgada ou que tenha água em que um peixe possa sobreviver…
Adão e Eva estavam sós, apesar de sua prole estar espalhada pelo mundo. Na verdade, constituíam toda a civilização, mas ninguém mais lembrava que foram eles que realizaram o primeiro ato para isso. Atos, obviamente, que se repetiram inúmeras vezes no sentido não só de aumentar a prole, mas também… ah, deixemos pra lá!
Adão procurou tirar estes pensamentos de sua mente, buscando no seu íntimo aquela energia que nunca lhe faltara. Há muito entendera a importância de manter os pensamentos positivos e de como a mente tinha uma capacidade enorme de transformar os pensamentos em realidade. Neste momento lembrou-se de um jovem editor para qual concedeu uma entrevista lá pelos primeiros anos do século XX. Lembrava-se muito bem dele, pois tinha nos olhos uma energia imensa, que fez o perceber que ele alcançaria tremendo sucesso e que contribuiria, em muito, para o entendimento da força do pensamento em prol do crescimento da humanidade. Se bem lembrava, o nome do jovem era Hill, para quem Adão havia declarado que “pensamentos são criaturas – e criaturas poderosas quando se misturam com propósitos definidos, persistência e um desejo ardente de que tudo se traduza em riquezas ou em outros bens materiais”. E o jovem parece ter levado esta frase à risca, pois pelo que Adão sabia, ele pensou e enriqueceu.
Abrindo os olhos por completo, Adão ordenou à casa que abrisse apenas parcialmente as janelas e ligasse a música de despertar no volume quatro. Isto porque, desde os velhos tempos, Eva odiava ser acordada de forma abrupta. A casa, que Adão preferia chamar de Jô para dar um toque mais pessoal (coisa rara nestes tempos), prontamente atendeu a ordem verbal. Afinal era um modelo com pouco mais de dez anos, mas que já trazia embarcada a tecnologia de comandos por voz. Eva, uma típica earlyadopter, já havia solicitado para que fosse feito um upgrade para a utilização do comando mental, porém Adão ainda não se sentia confortável com esta aplicação dada ao pensamento, ou talvez com a ideia do implante do chip subcutâneo, já que nunca fora dado a nenhum tipo de intervenção cirúrgica, mesmo que a medicina já garantisse “zero dor” neste tipo de procedimento.
Com as cortinas semiabertas Adão já podia ver o céu violeta avermelhado, resultado da elevada concentração de biopolímero particulado que havia sido disperso na atmosfera para absorver os raios ultravioletas, já que a camada de ozônio havia há muito sido completamente destruída pelos gases de efeito estufa. Neste momento, lembrou do tempo em que a Terra era conhecida como “Planeta Azul”, título que os habitantes da estação orbital há muito já haviam declarado estar obsoleto, sendo que o mais preciso seria dizer “Planeta Purpurovioláceo”.
Ao mesmo tempo em que Adão se sentava na cama, Eva dava um bocejo e esticava os braços, num ritual que repetia há milênios. Entretanto, interrompendo o quase mecânico “bom dia meu amor”, Eva, de um pulo, sentou-se rapidamente na cama e, quase gritando, disse que tivera um sonho…
Os seus olhos transmitiam um sentimento entre o assustado e o perplexo, enquanto era perceptível que seu coração quase saía pela boca. Com calma, Adão começou a inquirir a companheira sobre o ocorrido e o que ela havia sonhado que a deixara neste estado.
Arrumando a sua segunda pele – o nome dado para as roupas inteligentes que tal como o tegumento natural tinham a capacidade de regular uma série de funções com o meio externo, como temperatura, umidade e os sinais eletromagnéticos de controle – Eva olhou ao seu redor, como se ainda não se desse conta de onde estava.
Olhando no fundo dos olhos do companheiro, Eva começou a narrar lentamente o que havia sonhado. Começou por descrever o local onde se via um céu azul, com nuvens brancas que lembravam… (como era mesmo aquela planta que dava uma fibra para produzir roupas antigamente???) … ah, algodão! Depois falou das árvores, muito verdes e repletas de animais, pássaros de verdade, muitos deles, coloridos e canoros. Aliás, o som de seu sonho talvez tenha sido o que mais lhe impressionou, confessou a Adão.
E, naquele lugar também havia um lago. Pequeno, mas repleto de peixes, que ela podia ver através das águas transparente. Daqui e dali via alguns deles aflorarem à superfície para pegar os pequenos fragmentos de alimentos que algumas crianças atiravam na água.
Neste momento Eva parou a narrativa, respirou fundo e Adão pode perceber seus olhos se umedecerem. Crianças, disse ela. Eram várias, de idades que não podia precisar bem. E elas conversavam, corriam, pulavam e brincavam. Enquanto alguns meninos chutavam pelotas de couro, meninas reproduziam situações cotidianas com pequenas miniaturas de material plástico. E enquanto brincavam davam risadas que ecoavam por todos os lados. Os sons, mais uma vez lhe impressionaram…
E haviam também adultos naquele lugar. Alguns mais atentos às crianças, outros caminhando em pares, outros ainda conduzindo seus pequenos pets – estes em quantidades bem menores do que se estava acostumado a presenciar nos tempos atuais – e outros se movendo em artefatos mecânicos de duas rodas. E eles também andavam com sorriso nos rostos.
Respirando fundo, Eva teceu um comentário que pareceu ser o mais espantoso daquele sonho: todos estavam sob o sol sem nenhuma proteção especial contra a radiação e respiravam o ar sem nenhum tipo de filtro. Tudo muito estranho, muito estranho…
Adão abraçou lentamente a esposa, envolvendo-a em seus braços deitando sua cabeça sobre o seu ombro. Respirando fundo, como se visualizasse tudo que Eva havia descrito, Adão sussurrou ao seu ouvido que não era um sonho estranho: ela apenas havia recordado um dia de domingo em um parque… no início do século XXI.
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